
Brincar é inerente ao desenvolvimento saudável das crianças e não deve ser encarado como sinal de imaturidade e irresponsabilidade, antes pelo contrário, deve ser visto como crucial para o desenvolvimento sócio-emocional, psicomotor e principalmente cognitivo dos indivíduos.
Nesta intervenção procura-se reflectir criticamente sobre o estado actual da actividade lúdica e a articulação curricular, tendo por base a compreensão das pressões sociais decorrentes das alterações sociais e políticas que modificaram o sentido saudável e útil do “brincar” e levaram à curricularização dos tempos livres dos mais pequenos.
Não esquecendo que há bem pouco tempo a instituição familiar começou a sofrer modificações que se repercutem nos caminhos que hoje se traçam, e não esquecendo a imprevisibilidade e incerteza que marcam o futuro daqueles que hoje são crianças, surge a necessidade de os preparar com a flexibilidade e adaptabilidade necessárias para o seu futuro. Os caminhos que se percorrem no nosso país com vista a esta preparação é que não são de todo os melhores.
Brincar é “um acto que, de um modo espontâneo ou dirigido, é indispensável para o desenvolvimento equilibrado das crianças”. Alguns autores defendem mesmo que a brincadeira é educação. Outros referem que “brincar é uma actividade dotada de uma significação social precisa que tal como outras necessita de aprendizagem” (Brougére, 1998). Jean Piaget vê a actividade lúdica como crucial para o desenvolvimento socio-emocional, psicomotor mas essencialmente cognitivo. Eduardo Sá explica que “brincar é o aparelho digestivo do pensamento”. Alguma investigação na área mostra que o aproveitamento escolar aumentaria e melhoraria significativamente se as crianças tivessem oportunidade de praticar actividades lúdicas com mais frequência. Outros estudos reconhecem que as crianças aprendem por meio da brincadeira e aprendem, consciente ou inconscientemente, com todas as formas de experiência. Pessanha (1999) indica que “a actividade lúdica é uma manifestação frequente e espontânea do comportamento infantil e que parece ser uma atitude natural e indispensável ao seu desenvolvimento”. De acordo com as teorias construtivistas do desenvolvimento humano, as crianças constroem o seu próprio conhecimento na interacção com o mundo físico e social. Neste sentido, brincar é uma forma de manipulação do mundo externo com vista ao enquadramento deste nos esquemas de organização actuais da criança, sendo que quantas mais oportunidades uma criança tiver no decorrer da brincadeira, maior será a probabilidade de ocorrência de novas aprendizagens.
Várias são as alterações sociais que “empurram” actualmente as crianças para dentro de casa, começando pela protecção elevada dos pais, a falta de sensibilidade aos direitos das crianças, as políticas habitacionais, o trânsito automóvel (retirou a mobilidade autónoma das crianças nas cidades), os medos dos pais acerca da rua (os quais os media também influenciam), a tendência actual de os pais institucionalizarem as actividades dos filhos para além da escola, o aparecimento das novas tecnologias, entre outros. De salientar que uma das consequências mais nefastas deste padrão de vida sedentário actual das crianças é a obesidade infantil, pois não há dispêndio de energia que é essencial para o desenvolvimento.
Com as alterações no tempo social como resultado de imperativos sociais, económicos e políticos, a família sofreu modificações, cujos efeitos se reflectem no percurso de vida das crianças, nomeadamente ao nível dos seus tempos livres. Assiste-se nos dias que correm a várias estratégias familiares para lidar com o esvaziamento do tempo familiar e risco de abandono ou solidão precoce das crianças devidos à omissão presencial parental. Uma resposta comum é a sobreocupação do tempo infantil por parte dos pais cuja motivação passa por uma pressão social de que é necessário possuir um conjunto de requisitos instrumentais individuais destinados ao futuro, o qual tem inerente incerteza e risco. Esta é, sem dúvida, uma visão técnico-racionalista levada ao extremo por parte dos adultos, cuja ênfase é o produto escolar final, auxiliado por actividades extra-escolares onde “são colocadas as crianças” (eg. cursos de inglês, cursos de informática, cursos de música, desportos variados e os conhecidos ATL). Todos estes tempos livres das crianças transformados em tempos académicos pelo adulto, em detrimento da actividade lúdica autêntica, são uma espécie de colonização do tempo infantil que impede a enculturação lúdica através dos pares, afectando a socialização identitária de pertença e integração numa ordem social por parte das crianças. Esta tendência actual de curricularização dos tempos livres quer por parte dos ATL, quer por parte da escola, retira às crianças o direito à brincadeira espontânea e não vai levar concerteza a uma educação sucedida com flexibilidade, imaginação e criatividade, características que o risco e a incerteza do futuro exigem.
Para atenuar esta tendência há necessidade de compreensão e valorização, por parte dos adultos, da função da brincadeira, no sentido de serem eles próprios a facilitarem e a guiarem conscientemente a brincadeira das crianças e indirectamente contribuir para o desenvolvimento global das mesmas!
Saudações Psicológicas
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